segunda-feira, 7 de abril de 2008

"COM RAIVA NO CORAÇÃO" - Ingrid Betancourt

Convêm relembrar umas passagens (pag 69,70,71,72) do livro "COM RAIVA NO CORAÇÃO" de Ingrid Betancourt, para terem uma pequena ideia, não só do valor do seu trabalho e luta, mas também, o valor que ela representa para as Farc (contrabandistas), para os políticos colombianos, para os países corruptos da América Latina.



"Quanto a mim, vou herdar um segundo dossier envenenado: o do contrabando.Trata-se de um questão urgente.A indústria colombiana está a definhar devido à entrada fraudulenta de produtos estrangeiros não tarifados e, portanto, vendidos no mercado interno a um preço muito inferior ao da nossa produção local.É, nomeadamente, o caso da indústria colombiana do tabaco, asfixiada pelos cigarros americanos de contrabando.As nossas produções de têxtil, calçado e vinho estão também ameaçadas.Por outro lado, muita gente vive desse comércio ilícito, e seria irresponsável querer mudar tudo de um dia para o outro.A nossa ideia é, pois, delimitar geograficamente as zonas ditas de « comércio livre » no interior das quais os produtos colobianos seriam isentos de impostos, de forma a neutralizar a atracção do contrabando.De facto, para quê importar fraudulentamente cigarros amercinos se os nossos são ao mesmo preço, e até mais baratos?
esta prática de transição permitiria à população local prosseguir o seu comércio, pondo fim à criminalidade inerente ao contrabando e à rede de corrupção que ela implica.
Mas este plano só poderá existir se se conseguirem convencer as pessoas a aderir a ele.E eis-nos então de partida - três tecnocratas - para Maicao, capital do contrabando na Costa Atlântica, onde eu acompanhara a minha mãe no Verão de 1986, por ocasião dessa viagem surrealista dos deputados.Desta vez, o ambiente não está para graças.Uma camioneta Toyota espera-nos à saída do avião.Tem a particularidade de estar crivada de impactes de balas.

-O que é que aconteceu a este veículo ? - perguntamos.
- Isto aqui é muito perigoso - responde sombriamente o motorista. - É preciso ter cuidado, as pessoas são violentas.
Caso não tivéssemos entendido a mensagem, ela é repetida à entrada de Maicao, numa faixa gigantesca, estendida por cima da entrada: « Fora com os enviados do Ministério».E para sublinhar a frieza da recepção, todos os comerciantes fecharam as suas lojas, à laia de boas-vindas.Operação cidade-fantasma, e, por toda a parte, panfletos a dizer : «Rua!».
Está programada uma sessão pública para as dezassete horas, numa enorme cabana de terra batida, com capacidade para quinhentas pessoas.O clima é tenso quando chegamos.Uma multidão de homens de olhar sombrio - não vejo uma única mulher vestida com o traje wayu dos índios da região - e, mais inquietante ainda, há garrafas de wisky a circular.O ambiente é pesado, estamos todos a suar.

Leonardo o único homem do nosso trio, começa a explicar o projecto de um ponto de vista técnico, no meio de uma silêncio trocista.Em seguida, erguem-se alguns braços, e o público começa a manifestar-se.São dezoito horas; vão monopolizar o microfone durante mais de quatro horas.Progressivamente o tom sobe, estimulado pelo álcool, pela cólera e pelo calor, passando a vociferações de ódio e aos insultos. «O Governo está a estender-nos uma «armadilha», « O pessoal do Governo só cá vem para nos criar problemas»...
Quando Leonardo tenta assumir o controlo, um grupo de homens bêbados aproxima-se, lançando perdigotos e, de punho no ar, ameaça-nos: « Mentirosos!Burocratas! Vocês não percebem nada deste país!Ponham-se a andar!»
- Vamos embora - segreda-me a minha colega. - Vamos ser massacrados.
Quanto a mim, fugir seria catastrófico para a imagem do Estado, que já não é nada brilhante.Decido então jogar a última cartada, a da galanteria, sempre presente no coração dos Colombianos.Levanto-me e pego no microfone.
- Só vejo homens aqui - digo eu gravemente. - Estamos aqui há horas e durante todo este tempo esperei em vão que um de vós tivesse ao menos a cortesia de nos deixar dizer qualquer coisa.Mas ninguém foi capaz dessa elegância elementar...
Silêncio.Dir-se-ia que estas palavras os despertam.Apertam-se uns contra os outros, resmungam, e depois calam-se.Só me resta engrenar no meu discurso.
- O que é que vocês querem ? Um país onde é preciso que as pessoas se matem umas às outras para poderem ter o seu comércio?Trouxeram-nos para aqui num veículo crivado de balas.É nesse clima que vocês querem obrigar as vossas mulheres a viver e educar os vossos filhos?Mas que ideia fazem vocês da felicidade, da vida?Os mais ricos de vocês barricam-se atrás de portões, arames farpados, câmaras de filmar, e nunca têm a certeza de poder regressar a casa à noite.De que vos serve serem ricos se vivem no meio do terror?A verdade é que vocês são todos prisioneiros da corrupção e do contrabando.Pensem um pouco se as vossas mulheres e os vossos filhos não prefeririam viver ao lado de um comerciante normal, honrado, cujo sucesso não o transforma em alvo abater...Ouçam bem:não viemos aqui para vos impor uma coisa à viva força!Essa zona de comércio livre é do interesse de todos, tanto nosso como vosso.Mas não a criaremos à força.Isso nunca!Se a quiserem, muito bem.Se a não quiserem, ficarão nesse estado de ilegalidade que todos os anos mata dezena de vós.Eu, pessoalmente, só vejo nisto o interesse dos vossos filhos...
Entreolham-se, murmuram, acalmam-se.Estão menos agressivos.Contudo, já é tarde, e decidimos voltar a reunir-nos no dia seguinte, não com quinhentas pessoas, mas com uma delegação.Seis meses depois, as zonas de comércio livre de Maicao, Urubá e Tumaco são criadas por decreto. "

Sem comentários: